quinta-feira, 20 de março de 2008

O sabor da morte

Clôdos Paiva


O primeiro cadáver que a gente vê, nunca se esquece. O meu eu vi quando tinha uns 5 anos, me lembro com clareza daquilo. Ia comprar pão no bar do Seo Neguinho, de repente, vi uma rodinha na porta do bar. Tinha um pessoalzinho lá e tal, mas não tava dando pra ver nada do que pegava ali no meio. E eu, pivete curioso pra caralho, tinha que curiar, né. Putz, nem me fala, mew! O malucão lá no chão, todo esculhanbado de bala.

Fui puxado pela gola, era o meu primo. “Cai fóra vai! Cê num tem nada pra vê aqui não”. Fui embora. Fiquei quase uma semana sem comer, pensando naquilo...e pá... confesso que foi fóda. Depois a gente acaba se acostumando a ver presuntão quase todo dia na quebrada. Um jogadão no córrego, outro na viela, no escadão, no ponto de ônibus, na porta da igreja, no campinho...

O primo que me enxotou tarde demais daquela cena era o “...............”, um dos caras mais sangue B que já apareceu naquela vila do diabo.

Alguns anos mais velho que eu, ele sempre me deu uns toques pra que eu me mantivesse afastado das tretas, da pedra, da farinha, do crime e do goró. Talvez por ele não querer que mais ninguém da família desandasse.

Ele dava mó trampo, era firmeza com todos, nunca falhou com ninguém...Mas só andava com tranquêra. E olha que ele tinha um puta de um conceito com os ladrões fudidos lá da área, trutas das antigas dum irmão dele que tinha já falecido. Eu já fazia os meus movimentos, há uma boa cara, só que nunca dei goéla pra otário. Era uma iniciativa pessoal e soube cair fora pela mesma porta da discrição.

Uma mão, enquanto a gente fumava um baseado, cismei de perguntar pra ele, o que tinha sido aquela fita que rolo lá no bar do Seo Neguinho (uma das várias que tinha rolado lá) quando eu era pivete. Foi o seguinte o barato: o maluco que tinha tomado os pipocos lá, tava devendo um dinheiro pra biquêra, mó merreca, e ficava enrolando os caras e tal...aê, ele foi cobrado...só isso.

- Viu, seo otário? – disse ele – ce fica aê querendo pagar de loco, oh! Depois vai comê algodão também, todo arrumadão, igual na sua 1ª comunhão, só que deitado no caixão... sua mãe vendo... bunito, né não ?

Não respondi nada na hora, mas pensei bastante naquilo depois. Nunca devi pra biquêra nenhuma, mas aquele toque tinha sido realmente válido para mim. Pena que não serviu para ele próprio.

Há males que vem para o mal mesmo. Esse dia tinha sido realmente fóda pra mim.
Cheguei em casa mó mau. Meu mano tinha sido ferido pelos polícia no meio da missão.
Tudo tinha dado errado na porra daquele dia maldito. Foi quando me deram a notícia que o “.................” tinha morrido. Parece que eu tinha entrado em transe naquela hora. Jantei, assisti o jornal, depois liguei pra minha mina e conversei normal... Foi aê que veio o estalo que me acordou. Caralho! Botei o jaco e fui pro cemitério.

Putz! Os filhos da puta fizeram a mó bagunça desgraçada na casa da minha tia, um filho e um marido já perdidos, e mais o caçula agora. Sem mais motivos pra nada já.
A vagabunda que tinha chamado ele praquela casa de caboclo, já era sambada na mão dos malandrinho nóinha lá da área, e ele a tinha dispensado.

Altas horas da noite, ela o chamava no portão. O burro nem pra se ligar já foi abrindo a porta: pilantra muquiado de oitão já no quintal da casa. Depois do primeiro no peito e já caído no chão, colou um outro de automática e três na cara: nem teve chance, vagabundo tinha vindo na intenção mesmo. Minha tia o abraçando: devolvendo-o ao seu ventre.

Mano consideradíssimo na área, irmãozão mesmo dos ladrão e dos patrão de responsa. Só que não se contentou em ficar só na maconha, como toda a gente de bem. Ele chafurdou bonito na lama do crack, e com receio da ciência dos malandros desse fato (ele sabia que os caras iam se magoar), ele ia pegar esses baratos com os cascorébas que faziam qualquer besteira por 10 paus que fosse.

- Morreu por 40 conto! – me falaram lá no velório.

O cara tinha me dado vários conselhos valiosos e tal, tinha me livrado de várias tretas já, e agora é ele quem ta ali, todo enfeitado igual bolo de aniversário. Gostaria de poder perguntar pra ele: que gosto tem o algodão, hein? Que gosto será que tem a morte? Porque o seu cheiro eu sentia todos os dias.

10 comentários:

Anônimo disse...

Clodos!! Parabéns !!! Sou sua fã!! rs... beijos Gabi

ocrana disse...

Gostei muito, espero outros em breve!!!

Beijo

Patricia

Érica Peçanha disse...

Putz, Clodoaldo, este conto é MUITO bom. Espero que venham outros... E.Peçanha.

Unknown disse...

eae clodo apavoro, mandou bem..
abraços

Rodrigo
isso mesmo aquele do arquivo.

X disse...

Da hora, nego, da hora!
Você é foda!
Beijo, beijo, beijo,
Shis.

Unknown disse...

Clodô, este conto fenomenal na linguagem e na realidade eu já tinha lido, posta logo o outro que já tá na sua cabeça

abração

Mau

Unknown disse...

Gostei muito do blog e dos contos....legal saber que vc mantém este espaço com idéias e pessoas tão bacanas. Abraço, Flivio

Sâmia disse...

É, meu irmão, a violência não tem fronteira. Nem a desgraça. A diferença é que tua história, se viesse lá de onde eu venho, teria outro léxico e outro sotaque. O resto seria igual. Infelizmente, pra pobre é sempre tudo igual...

Anônimo disse...

Tá mesmo brutal este conto rapa!!Está Altamente e bueda fixe , como dizem meus amigos da tugolandia!!Forte abraço de Barcelona!Robertinho

Verônica Lima disse...

Eu ia a enterrros quando pequena, quando não entendia aquilo tudo ali. O algodão nas narinas era uma das coisas que mais me impressionava e aterrorizava.

Seu texto me impressionou também, especialmente por eu não ter conseguido acompanhar seu ritmo inundado de gírias. Otima a história. Direta e triste, como toda morte sem razão é. A vida não tem preço, e ainda assim tanta gente morre por qualquer bobagem a todo instante mundo a fora...