quarta-feira, 23 de abril de 2008

Paredes

Por: Cortecertu


Tio, por favor. Quando o senhor vai me levar pra casa?

Assim começa a história que as paredes daquele barraco me contaram. Mas esse começo, seria começo? Quase meio? Breve fim?

Não sei. Antes de continuar, gostaria de me apresentar. Sou aquele cara de todos os dias, sou o senhor mal vestido levado pelo braço, sou a criatura bêbada constantemente transladada do boteco para goma, da goma para o sono, do sono para...Sou o Tio e, desta história, sei tanto quanto você. Sei nada.

Manhã de 23 de março. Sara, como de costume, antes de sair para trabalhar, faz suas preces e pede para as quatro paredes vigiarem seus filhos. Josué, João e Ester. Sei que algum leitor detalhista pode estar indagando sobre a idade das três crianças. É sempre assim. Quando, onde, como, quem, por que. Dane-se. Enquanto seguimos as convenções narrativas, Ester brinca com um isqueiro. As paredes, pobres paredes, amigas que sempre trouxeram calor e proteção, agora são como um forno. Eu ouço gritos, Sara não, está distante com seu carro.

A subida é íngreme, ela pára. Os outros veículos passam xingando, seus motoristas buzinam incessantemente. Um pivete passa por perto e vê aquela mulher com uma carroça cheia de metais e papelão, o garoto se compadece e empurra, ajuda Sara a se livrar daquele grande obstáculo.

A carroça não sabe por qual razão é chamada de carro por Sara, vive discutindo com a mulher, e não é só questão de batismo não. O carro/carroça reclama do excesso de peso, das rodas desalinhadas, mas logo fica calma e se sente confortável ao entrar em contato com o corpo de sua guia, coberto por uma bermuda, evolvido numa camiseta “Maluf ama São Paulo”, onde seus seios ganham evidência a cada esforço, a cada ladeira. A carroça/carro tem certeza - Sara merece suas carícias, é com ela que a mulher divide seu suor. Quem dera ser moldura de espelho, ser cama. As paredes iriam presenciar belas cenas.

Sara tem sede, deixa sua companheira numa esquina, sob o olhar desejoso de outros habitantes das ruas. Ao entrar num boteco, para descolar um copo d’água, sente aquele cheiro de pinga, percebe o olhar dos clientes que bebem no local...Lembra do féla da puta, o miserável pai dos seus filhos...Não se esquece que quando tinha nove anos, foi levada da praça onde brincava.

Ao sair do bar, em meio a lágrimas, Sara pergunta em voz baixa: Tio, por favor. Quando o senhor vai me levar pra casa?

Assim começa a história que as paredes daquele barraco me contaram. As paredes, malditas paredes...

Continua...

sexta-feira, 4 de abril de 2008

A CABANA E O SEU MAR

Por: Felipe Alexandrino


Hoje a solidão me força a escrever. Minha única companhia, por anos, é esta paisagem ao fundo da janela que nunca mudou. Nem mesmo o pássaro que chega a cada aparecer do sol, se difere do pássaro que se foi e não mais voltou.

As nuvens, sempre nubladas, estão a esconder a “timidez do sol”. Pra que irradiar uma cabana sem luz e um pescador que nem sequer tem um anzol?
Minha vida por anos tem sido assim, não reclamo dos dias, nem da agonia.
Sei que sou merecedor dessa areia que esconde o jardim.

O dia que "ô pai" se foi, tudo foi uma tristeza só. Ele saiu como qualquer pai de família faz, em busca de uma digna refeição. Então, ele caminhou distante e com muita fé em direção ao mar, parece que encontrou aquela luz que o sol não irradia, lá no fundo, nas profundezas da escuridão. Correu até o mar e pela ultima vez, lhe vi com seus pés no chão.

Desde "o ultimo caminhar” mamãe ficou muito só. Estendia sua roupa como todo dia, mas sem ter aquela mesma alegria que sempre me fez sorrir. Até o rádio de que ela tanto gostava, eu a vi desligar.
No fim daquela tarde, meus olhos encheram de lágrimas, nem mais a velha cabana me acolheu. Corri pela imensidão da areia, com passadas fortes a gritar: Onde? Onde é que está Deus??
E chorei! Como nunca! Até a noite aparecer no fundo da minha janela.

Os dias se passaram e mamãe piorou, O que era uma falta de espírito, em doença se transformou. Logo vi, não faltava muito para o mar também lhe chamar. Numa certa manhã minha previsão aconteceu. Cheguei à nossa velha cabana, e a procurei por todo lugar. Na vila, no brejo, nas montanhas, ao redor da imensidão do mar.
- “Que coisa mais estranha! A mamãe não levanta da cama, desde o dia que deixei de sorrir”.
E o meu sorriso que há muito tempo não surgia, voltou junto com a esperança de ve-la caminhar por aí.
Saí pela porta a correr. Corri muito, por todas as partes. Caí na areia inúmeras vezes. Ansiava para lhe ver.
Pois bem, essa esperança foi se acabando, aos poucos, até a hora do amanhecer. Mamãe também foi ao encontro do mar. Como logo imaginei.

Não mais sorri, não mais falei. Nem mais chorei. Fiquei aqui, esperando esse dia chegar. Escrevo essa carta, com um pesar no coração. Sei bem que por muito tempo ficará nesta cabana, esperando por anos e anos, para que um dia, um nobre a leia. Do fundo do meu coração, sentirei falta dessa paixão tão simples, pela a janela, a cabana e a areia.

Mamãe e "ô pai" me esperam. Tenho que ir.
Meu conforto desde a infância.
Faz tanto tempo! Tanto tempo!
Já não vejo a hora de voltar a sorrir.