quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Lançamento do livro Negrafias - Antologia de Autores Negros

CicloContinuo, Elo da Corrente e Edições Toró convidam:


Lançamento do livro Negrafias - Antologia de Autores Negros/ Sarau Os Novos Griots

Homenageia o poeta negro Solano Trindade

Organização: Marciano Ventura
Prefácio de Oubi Inaê Kibuko
Autores:
Akins Kinte - Allan da Rosa - Carlos Alberto Cidinha da Silva - Clodoaldo Paiva - Elis Regina F. Vale - Elizandra de Souza - Geovani di Ganzá - Johnny Pqno - Miguel - Marciano Ventura - Márcio Folha - Michel da Silva - Raquel Almeida

O livro Negrafias é uma antologia de autores negros que abarca diversos gêneros como: conto, poesia, teatro e texto em quadrinhos. A publicação do livro surge como fechamento da série de eventos “Os Novos Griots”, um sarau cultural onde foram realizados lançamentos de livros com o objetivo de reunir curiosos de todo gênero em torno das produções da vertente negra na literatura brasileira. Os eventos foram organizados, em parceria com a Oriashé - Sociedade Brasileira de Arte e Cultura Negra - durante os anos de 2006 e 2007, no bairro de Cidade Tiradentes/SP.
Apesar da finalização do evento Os Novos Griots, a publicação de Negrafias não se constitui como produto final do trabalho, mas como início de outras de novos vôos e realizações.


07/11 –
Local: Núcleo de Cultura e Extensão em Artes Afro-Brasileiras /USP - Grupo de Capoeira Angola Guerreiros de Senzala
A partir das 20:00h - Com apresentação de Dança Afro, música com Gerson Melodia, Sarau e Coquetel de Frutas
R: Av. Professor Lúcio M. Rodrigues, Travessa 05 – Bloco 28 – Cidade Universitária – tel 73120487/ 98118499

13/11 –
Local : Ação Educativa – a partir das 19:30h
Lançamento com projeção do documentário História duma vida simples – , bate papo sobre a vida, obra e o legado de Solano Trindade, Sarau e música. e sorteio de um livro de Solano autografado pelo autor.
R General Jardim 660 Centro – tel 31512333

20/11 -
Local: Sarau Elo da Corrente - a partir das 19:30h
Lançamento com projeção do documentário História duma vida simples – sobre Solano Trindade, Sarau do Dia da Consciência Negra, música e mil literaturas.
R: Jurubim, 788 - Pirituba

23/11 -
Local: Barracão do Samba - a partir das 16:00h
Lançamento do livro com sarau, música e muito samba.
Cristóvão Camargo (altura do n.66) - travessa da Av. Tiquatira. (11) 9763-2596c/ Rick.

Obs: em anexo só há o cartaz do lançamento do dia 07, logo estaremos enviando os outros. Sua presença é importante.

Contatos – negra_fias@yahoo.com.br

Segue alguns trechos do livro:


Berimbalando as capoeranças

tchi tchi TOON TIIIIIM....
Fecharam nossa africanidade
Num gigante baú de riqueza
De madeira falsidade
No cadeado a tranqueza
C’o chumbo de meias-verdades
Míope vesga marvadeza

Porque o levante é liberdade
E não caneta de princesa

Um imaginário com idade
E nossas linhagens realeza?
Meu sobrenome de verdade?
Quero sentir minha ascendência

Ilê Axé é liberdade
E não caneta de princesa

Não só a dor na costa que arde
Na servidão com ligeireza
É no corpo a espiritualidade
Minha negritude com beleza
No axé da ancestralidade iê
Maculelê iê capuera

Nossas roda é viva liberdade
E não caneta de princesa

Em falá nisso a gente sabe
Num devo favô a essa carnicêra
Não é papel é guerra, é arte
É vermelha e quente correnteza

A voz do Gunga é liberdade
E não caneta de princesa

Oritempoespaço unidade
Sô mulher negra, herança proeza
Sempre à prova a dignidade
Gingo fiel à minha natureza

Nossas mãe preta é liberdade
E não caneta de princesa

Canto aqui nossa fertilidade
Zóio de águia fitando o cegueta
Guerra e festa é nossa integridade
Quilombagagens mocambelezas

Porque nossa vivexistência é liberdade
E não caneta de princesa...

Elis Regina do Vale
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Favela, Mulher!

Favela, mulher corajosa!
Nem criança, nem idosa
Nas mãos flores e lanças
No olhar constante esperança.

Favela, mulher maravilhosa!
Nem arrogante, nem orgulhosa
Muitas vezes parceira na dança
Outras solitárias nas andanças.

Nas escadarias de tua geografia
Correndo feito menina
Seu sorriso espada que desafia.

No coração passou parafina
Abraça o caráter que não desfia
Já a face encharcou de purpurina.

Elizandra de Souza
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Poemas de Outono

I
Não sei escrever poesias
As palavras que finjo escrever
Escrevem por si mesmas,
Eu as escrevo
Mas todas fingidas,
Finjo ser eu mesmo
As palavras fingem serem minhas,

Que desventura tentar a poesia
Sou o sonhador da janela do meu quarto
Que finge olhar a lua
Como se tivesse inspiração,
Mas que na verdade
Acha bonito estar na janela do quarto
Fingindo que sonha para a lua

Vou fechar as janelas
Do meu quarto sem janelas,
A mansarda e a lua
Que fique do lado de fora
Já não as suporto

Vou queimar meus falsos poemas
De versos que se fingem de mim
Nunca mais serei esse eu mesmo
Que nunca fui.

Giovanni di Ganza

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Paredes

Por: Cortecertu


Tio, por favor. Quando o senhor vai me levar pra casa?

Assim começa a história que as paredes daquele barraco me contaram. Mas esse começo, seria começo? Quase meio? Breve fim?

Não sei. Antes de continuar, gostaria de me apresentar. Sou aquele cara de todos os dias, sou o senhor mal vestido levado pelo braço, sou a criatura bêbada constantemente transladada do boteco para goma, da goma para o sono, do sono para...Sou o Tio e, desta história, sei tanto quanto você. Sei nada.

Manhã de 23 de março. Sara, como de costume, antes de sair para trabalhar, faz suas preces e pede para as quatro paredes vigiarem seus filhos. Josué, João e Ester. Sei que algum leitor detalhista pode estar indagando sobre a idade das três crianças. É sempre assim. Quando, onde, como, quem, por que. Dane-se. Enquanto seguimos as convenções narrativas, Ester brinca com um isqueiro. As paredes, pobres paredes, amigas que sempre trouxeram calor e proteção, agora são como um forno. Eu ouço gritos, Sara não, está distante com seu carro.

A subida é íngreme, ela pára. Os outros veículos passam xingando, seus motoristas buzinam incessantemente. Um pivete passa por perto e vê aquela mulher com uma carroça cheia de metais e papelão, o garoto se compadece e empurra, ajuda Sara a se livrar daquele grande obstáculo.

A carroça não sabe por qual razão é chamada de carro por Sara, vive discutindo com a mulher, e não é só questão de batismo não. O carro/carroça reclama do excesso de peso, das rodas desalinhadas, mas logo fica calma e se sente confortável ao entrar em contato com o corpo de sua guia, coberto por uma bermuda, evolvido numa camiseta “Maluf ama São Paulo”, onde seus seios ganham evidência a cada esforço, a cada ladeira. A carroça/carro tem certeza - Sara merece suas carícias, é com ela que a mulher divide seu suor. Quem dera ser moldura de espelho, ser cama. As paredes iriam presenciar belas cenas.

Sara tem sede, deixa sua companheira numa esquina, sob o olhar desejoso de outros habitantes das ruas. Ao entrar num boteco, para descolar um copo d’água, sente aquele cheiro de pinga, percebe o olhar dos clientes que bebem no local...Lembra do féla da puta, o miserável pai dos seus filhos...Não se esquece que quando tinha nove anos, foi levada da praça onde brincava.

Ao sair do bar, em meio a lágrimas, Sara pergunta em voz baixa: Tio, por favor. Quando o senhor vai me levar pra casa?

Assim começa a história que as paredes daquele barraco me contaram. As paredes, malditas paredes...

Continua...

sexta-feira, 4 de abril de 2008

A CABANA E O SEU MAR

Por: Felipe Alexandrino


Hoje a solidão me força a escrever. Minha única companhia, por anos, é esta paisagem ao fundo da janela que nunca mudou. Nem mesmo o pássaro que chega a cada aparecer do sol, se difere do pássaro que se foi e não mais voltou.

As nuvens, sempre nubladas, estão a esconder a “timidez do sol”. Pra que irradiar uma cabana sem luz e um pescador que nem sequer tem um anzol?
Minha vida por anos tem sido assim, não reclamo dos dias, nem da agonia.
Sei que sou merecedor dessa areia que esconde o jardim.

O dia que "ô pai" se foi, tudo foi uma tristeza só. Ele saiu como qualquer pai de família faz, em busca de uma digna refeição. Então, ele caminhou distante e com muita fé em direção ao mar, parece que encontrou aquela luz que o sol não irradia, lá no fundo, nas profundezas da escuridão. Correu até o mar e pela ultima vez, lhe vi com seus pés no chão.

Desde "o ultimo caminhar” mamãe ficou muito só. Estendia sua roupa como todo dia, mas sem ter aquela mesma alegria que sempre me fez sorrir. Até o rádio de que ela tanto gostava, eu a vi desligar.
No fim daquela tarde, meus olhos encheram de lágrimas, nem mais a velha cabana me acolheu. Corri pela imensidão da areia, com passadas fortes a gritar: Onde? Onde é que está Deus??
E chorei! Como nunca! Até a noite aparecer no fundo da minha janela.

Os dias se passaram e mamãe piorou, O que era uma falta de espírito, em doença se transformou. Logo vi, não faltava muito para o mar também lhe chamar. Numa certa manhã minha previsão aconteceu. Cheguei à nossa velha cabana, e a procurei por todo lugar. Na vila, no brejo, nas montanhas, ao redor da imensidão do mar.
- “Que coisa mais estranha! A mamãe não levanta da cama, desde o dia que deixei de sorrir”.
E o meu sorriso que há muito tempo não surgia, voltou junto com a esperança de ve-la caminhar por aí.
Saí pela porta a correr. Corri muito, por todas as partes. Caí na areia inúmeras vezes. Ansiava para lhe ver.
Pois bem, essa esperança foi se acabando, aos poucos, até a hora do amanhecer. Mamãe também foi ao encontro do mar. Como logo imaginei.

Não mais sorri, não mais falei. Nem mais chorei. Fiquei aqui, esperando esse dia chegar. Escrevo essa carta, com um pesar no coração. Sei bem que por muito tempo ficará nesta cabana, esperando por anos e anos, para que um dia, um nobre a leia. Do fundo do meu coração, sentirei falta dessa paixão tão simples, pela a janela, a cabana e a areia.

Mamãe e "ô pai" me esperam. Tenho que ir.
Meu conforto desde a infância.
Faz tanto tempo! Tanto tempo!
Já não vejo a hora de voltar a sorrir.

segunda-feira, 31 de março de 2008

Conto Sim!

Por: Julio Fonte
I
- Conto sim! Mas prometa, esta mesa é uma cova e o que vou lhe falar vai ficar por aqui enterrado a sete palmos. Isto ninguém pode saber.

- Hei rapaz, você me conhece há mais de dez anos, pode falar, daqui nada sai!!!

- Bem, sabe que desde pequeno me familiarizei com armas, de todos os tipos, desde as menores e discretas às mais extravagantes e poderosas, porém todas assassinas. Meu falecido avó, você o conheceu! Se deus existe que ele o tenha agora, desde jovem já praticava tiro como esporte. De todos nós ele era o melhor, foi vitorioso em várias, várias competições. Meu pai aprendeu com ele e eu com meu pai. Sabe, na minha família nunca houve nenhum acidente com armas e nenhum homicídio, nada! Pede mais uma cerveja que essa já secou!

- Hei Zé manda mais uma aqui!!!!

- Ah, você já viu minha coleção!!?

- Lógico que vi e fiquei espantado, aquilo vale uma grana, não?

- Bota grana nisso, são décadas colecionando, uma por uma. Começou com meu avô e não para, vicio é vicio! Cada um tem o seu. Enfim, não esperava que ocorresse algo assim comigo, nós sempre achamos que as coisas só acontece com os outros na televisão, depois você troca de canal e pronto, acabou!!! Dormia tranqüilo e já ia aí umas duas da manhã. Sonhava até e sonhei que batiam na porta. Acordei um tanto assustado, mas o silencio reinava, tentei voltar a dormir e então ouvi uns barulhos de passos no andar debaixo. Todos dormiam tranqüilamente. Levantei e então novamente ouvi uma certa movimentação. Tive certeza que alguém tinha entrado na casa. Fui ate o armário e não pensei duas vezes peguei a melhor das minhas armas. Carreguei ela com o maior cuidado para não fazer barulho. Abri muito devagar a porta do quarto onde dormia e ao sair tornei a fechá-la. Estava tudo muito escuro, não acendi nenhuma luz. Moro na casa há vinte e três anos, conheço tudo muito bem e sabia ao certo donde o barulho vinha. Cheguei próximo a escada. Me encostei e fiquei em posição de tiro. De onde estava dava para ver a sala inteira. Tudo escuro, mas através do visor noturno ficava bastante nítido. Esperei... Até então não tinha visto ninguém, continuei esperando. O safado ia ter de passar pela sala para sair, pois ele entrara por aquela janela e teria de sair pela mesma, todas as outras estavam fechadas. Esperei, nisso creio que demorou uns cinco minutos e nada, já estava achando que eu tinha me enganado, não queria descer... Nesse momento o marginal passou e já se dirigia a janela. O safado estava carregado! Levava muita coisa e com certeza iria voltar para buscar mais. No que ele jogou umas das bolsas que carregava para o lado de fora e segurou na janela para pular, foi muito fácil, mirei e disparei o primeiro. BAM!!! No meio das costas. HAHAHA. Caiu, não deu tempo nem do coitado pensar. BAM!!! Na cabeça. Adoro silenciador! Minha mulher nem acordou. Coloquei minha querida no chão e desci. Estava feio o marginal, já estava morto!!!! Era um moleque. Já tinha visto ele para minha surpresa. Morava naquela favelinha que fica perto da avenida principal, quantas vezes já dei trocado para ele no sinal lá embaixo. Você acredita? Isso que dá!! A gente ajuda esses filhos da puta e ainda eles vêm roubar sua casa. Teve o que mereceu!!!!!!

- Que história sinistra!!!Mas você não está mal, sei lá, nervoso com tudo isso? Quantos anos ele tinha?

- Sei lá, uns vinte anos. Na hora só queria apagar o marginal. Depois foi um problema, pois minha mulher acordou e ao ver aquilo tudo, o figura estava feio mesmo e sangue para todo o lado, ela começou a chorar. Ficou desesperada. Mulher é foda!! Comecei a ficar nervoso também. A primeira coisa que pensei foi em ligar para meu amigo, sabe o Antônio delegado? Então foi a primeira coisa que fiz. Conto tudo porque confio em você.

- Fica sossegado, não falo nada para ninguém.

- Liguei para o Antônio e ele estava dormindo é lógico. Contei tudo para ele. Ficou bastante assustado e disse que isso poderia gerar uma situação bastante complicada, pois minhas armas não são todas legais e teria de provar defesa própria, ou seja, não seria fácil me livrar de boa, sem dor de cabeça. Ele disse que era para eu esperar e não ligar para mais ninguém que estaria chegando em 20 minutos. Nesse tempo acalmei minha mulher e disse que daria tudo certo, ela ficou trancada no quanto com o meu moleque que acabara de acordar e não estava entendendo nada, ficamos na sala eu e o defunto. Fiquei olhando para ele e pensei que realmente eu tinha feito a coisa certa, não senti culpa, sendo bastante sincero contigo, não senti nenhuma culpa. Imagina, provavelmente ele iria assaltar outras casas e acabar matando alguém, ele estava armado esqueci de lhe contar!!! Um 38 na cintura. Sabe, cortar o mal pela raiz! Foi isso que fiz, matei antes que ele matasse alguém por aí. Não fiz mais que meu papel de cidadão, defendi minha família minha propriedade. Trabalhei muito para ter tudo isso e não vai ser um vagabundo qualquer que vai destruir tudo. E mais... Não tinha futuro, nenhum...

- Nossa cara que historia.

- Bem depois de um tempo o Antônio chegou com mais um PM, isso já era umas 03h00min da madruga, ao entrar eles olharam o rapaz e disseram que o indivíduo já havia sido preso por assalto à mão armada e furto. E então me perguntaram se eu poderia me desfazer do tapete onde o morto estava. Disse que sim, mas não estava entendo o que eles pretendiam fazer. Então começaram a enrolar o morto no tapete e rapidamente o colocaram na viatura. Foram...

- E aí, o que fizeram com o corpo?

- Sei lá, devem ter desovado por aí, foi isso. Para falar a verdade às vezes me dá uma pontinha de dó da família quando vejo aquele cartaz de procura-se desaparecido no poste com a foto do rapaz , mas o que eu posso fazer? Cada qual escolhe o seu caminho.

- Cara que historia.

- Nem fala. Esse é o nosso segredo. Bem deixa que eu pago a conta, preciso ir, vou almoçar na casa da minha sogra, sabe como é domingão é preciso fazer a presença com o sogro. Aahahah!

- Até

- Até


II

- Alo, Zé? O que aconteceu homem ? Por que esta chorando? fala algo!!!!! Alo?

- Você esta sozinho?

- Tô !

- Aconteceu algo terrível ontem, estou meio perturbado ainda!

- Não me assusta fala logo.

- Ontem à noite...

- O que?

- Ontem à noite a Fernanda foi dormir na casa da mãe dela com o menino, nós discutimos feio...

- Ela volta não esquenta a cabeça com isso!!

- Mas não é isso, ela foi dormir na casa da mãe. Eu estava sozinho e fui dormir cedo, lá pelas 23h00min já sonhava até. Acordei por volta das duas da manhã com barulhos na sala. Levantei devagar. Pensei que fosse, sei lá, um gato ou algo que tivesse caído no chão ao acaso, mas quando ia descendo a escada para averiguar ouvi mais barulhos e vinha da cozinha dessa vez. Subi rapidamente novamente, porém silencioso. Peguei meu revolver e retornei. Tinham entrado em casa! Quando estava retornando, descia a escada de novo e na sala vi um vulto mexendo nos armários a procura de algo, estava de costa para mim. Dava para perceber, apesar da escuridão que fazia. Da escada mesmo dei um grito falando para ele levantar as mãos pois eu estava armado e se ele fizesse qualquer movimento mais brusco eu atiraria para valer.

- E ai?

- Ele levantou as mãos para o alto e ficou parado. Eu lentamente fui me aproximando. Fiquei com muito medo dele tentar algo e eu ter de atirar. Você sabe muito bem que odeio violência. Aquela arma em casa... nem fui eu quem comprou, foi o pai da Fernanda que deixou certa vez em casa. Ele sempre anda armado e sempre esquece de pega-la de volta. Mas o infeliz não fez nada, só pediu para eu não atirar. Cheguei mais próximo e coloquei o cano nas costas dele, eu tremia muito, estava nervoso demais.

- O que você fez?

- Não sabia o que fazer, o que eu ia fazer com o rapaz. Quando cheguei perto logo o reconheci. Você também o conhece. Sabe na Av. de cima aquele rapaz de cadeira de rodas que fica no farol pedindo trocado ?

- Sei!

- Sempre junto dele tem um outro. Alto e forte, mas novo ainda. Sabe de quem eu falo? Eles moram naquela favela perto da Avenida.

- Lógico que sei!! A gente vê eles todo dia a tarde no mesmo lugar!!!

- Então, quando estava mais próximo já o reconheci! Acendia luz e ficou confirmado. A única coisa que pensei no momento foi tranca-lo no banheiro. Procurei a arma dele e para a minha surpresa ele estava desarmado. Tranquei ele no banheiro e fui direto ligar para a polícia. Liguei no celular de um conhecido meu que é bastante influente, ele é delegado.

- Eles prenderam o rapaz?

- É ai que a coisa complica! Esse meu conhecido que prefiro não falar nome me disse o seguinte. Se ele fosse lá iam prender o rapaz, que é de menor e estaria solto em pouco tempo. Ele me conhece, conhece minha família. Passo por ele no farol todo santo dia. Ele tem amigos que provavelmente iam acertar as contas comigo de alguma forma depois. E esse depois provavelmente não seria tão depois assim. Ele me garantiu que o mais seguro era atirar no rapaz para matar e depois na mesma noite jogá-lo no rio.

- Não acredito! E aí o que você fez? Não vai me falar que matou o rapaz.

- COMO NÃO? COMO NÃO? O QUE VOCE FARIA? O PROPRIO DELEGADO FALOU E ELE É MEU AMIGO. ELE SABE DO QUE ESTAVA FALANDO.NÃO TIVE OUTRA OPÇÃO.

- Não grite, tente ficar calmo.

- Eu desliguei o telefone e fiquei sentado no sofá da sala. Nunca tinha pegado em um revolver na minha vida, quanto mais atirado em alguém. Fiquei sentado uma meia hora e então levantei. Eu tremia e chorava. Porque aconteceu comigo/ Nem abri a porta do banheiro. Não tive coragem. Lá de dentro não se ouvia nada. Disparei seis tiros na porta. Só quatro perfurou. Fiquei com medo, achei que não tinha acertado. Lembrei que junto ao revolver meu sogro deixara uma caixa com mais balas. Subi e recarreguei a arma para garantir. Desci e abri a porta. O infeliz estava caído todo torto em cima da privada. Um dos tiros acertou em cheio a cabeça. Tinha bastante sangue! Enrolei ele num grande tapete que não usávamos mais. Alterei a placa do meu carro, coloquei ele na porta mala e fui em direção ao rio. Isso ainda era noite e estava tudo deserto. Tirei-o com muita dificuldade do carro que ficou ligado e fui rolando com cuidado barranco abaixo o corpo. Escorreguei e por um momento rolei junto com o cadáver, foi muito rápido, me sujei todo de barro. O mais estranho foi que nessa hora tive a impressão do morto ter dito algo, pedido por socorro. Será que ainda estava vivo? Levantei e já estávamos na margem o empurrei para o rio e lentamente foi afundando. Estava muito perturbado e confuso, não sei se ele falou realmente ou se foi imaginação minha. Voltei correndo para casa limpei detalhadamente tudo, tomei um banho e é lógico não dormi mais.

- Você contou para mais alguém, para a Fernanda?

- Não ela não voltou ainda! Não vou contar. Não sei o que eu faço. Estou muito mal.

- Espera que em 20 minutos chego à sua casa.

- Espero.

- ...

- ...

quinta-feira, 20 de março de 2008

O sabor da morte

Clôdos Paiva


O primeiro cadáver que a gente vê, nunca se esquece. O meu eu vi quando tinha uns 5 anos, me lembro com clareza daquilo. Ia comprar pão no bar do Seo Neguinho, de repente, vi uma rodinha na porta do bar. Tinha um pessoalzinho lá e tal, mas não tava dando pra ver nada do que pegava ali no meio. E eu, pivete curioso pra caralho, tinha que curiar, né. Putz, nem me fala, mew! O malucão lá no chão, todo esculhanbado de bala.

Fui puxado pela gola, era o meu primo. “Cai fóra vai! Cê num tem nada pra vê aqui não”. Fui embora. Fiquei quase uma semana sem comer, pensando naquilo...e pá... confesso que foi fóda. Depois a gente acaba se acostumando a ver presuntão quase todo dia na quebrada. Um jogadão no córrego, outro na viela, no escadão, no ponto de ônibus, na porta da igreja, no campinho...

O primo que me enxotou tarde demais daquela cena era o “...............”, um dos caras mais sangue B que já apareceu naquela vila do diabo.

Alguns anos mais velho que eu, ele sempre me deu uns toques pra que eu me mantivesse afastado das tretas, da pedra, da farinha, do crime e do goró. Talvez por ele não querer que mais ninguém da família desandasse.

Ele dava mó trampo, era firmeza com todos, nunca falhou com ninguém...Mas só andava com tranquêra. E olha que ele tinha um puta de um conceito com os ladrões fudidos lá da área, trutas das antigas dum irmão dele que tinha já falecido. Eu já fazia os meus movimentos, há uma boa cara, só que nunca dei goéla pra otário. Era uma iniciativa pessoal e soube cair fora pela mesma porta da discrição.

Uma mão, enquanto a gente fumava um baseado, cismei de perguntar pra ele, o que tinha sido aquela fita que rolo lá no bar do Seo Neguinho (uma das várias que tinha rolado lá) quando eu era pivete. Foi o seguinte o barato: o maluco que tinha tomado os pipocos lá, tava devendo um dinheiro pra biquêra, mó merreca, e ficava enrolando os caras e tal...aê, ele foi cobrado...só isso.

- Viu, seo otário? – disse ele – ce fica aê querendo pagar de loco, oh! Depois vai comê algodão também, todo arrumadão, igual na sua 1ª comunhão, só que deitado no caixão... sua mãe vendo... bunito, né não ?

Não respondi nada na hora, mas pensei bastante naquilo depois. Nunca devi pra biquêra nenhuma, mas aquele toque tinha sido realmente válido para mim. Pena que não serviu para ele próprio.

Há males que vem para o mal mesmo. Esse dia tinha sido realmente fóda pra mim.
Cheguei em casa mó mau. Meu mano tinha sido ferido pelos polícia no meio da missão.
Tudo tinha dado errado na porra daquele dia maldito. Foi quando me deram a notícia que o “.................” tinha morrido. Parece que eu tinha entrado em transe naquela hora. Jantei, assisti o jornal, depois liguei pra minha mina e conversei normal... Foi aê que veio o estalo que me acordou. Caralho! Botei o jaco e fui pro cemitério.

Putz! Os filhos da puta fizeram a mó bagunça desgraçada na casa da minha tia, um filho e um marido já perdidos, e mais o caçula agora. Sem mais motivos pra nada já.
A vagabunda que tinha chamado ele praquela casa de caboclo, já era sambada na mão dos malandrinho nóinha lá da área, e ele a tinha dispensado.

Altas horas da noite, ela o chamava no portão. O burro nem pra se ligar já foi abrindo a porta: pilantra muquiado de oitão já no quintal da casa. Depois do primeiro no peito e já caído no chão, colou um outro de automática e três na cara: nem teve chance, vagabundo tinha vindo na intenção mesmo. Minha tia o abraçando: devolvendo-o ao seu ventre.

Mano consideradíssimo na área, irmãozão mesmo dos ladrão e dos patrão de responsa. Só que não se contentou em ficar só na maconha, como toda a gente de bem. Ele chafurdou bonito na lama do crack, e com receio da ciência dos malandros desse fato (ele sabia que os caras iam se magoar), ele ia pegar esses baratos com os cascorébas que faziam qualquer besteira por 10 paus que fosse.

- Morreu por 40 conto! – me falaram lá no velório.

O cara tinha me dado vários conselhos valiosos e tal, tinha me livrado de várias tretas já, e agora é ele quem ta ali, todo enfeitado igual bolo de aniversário. Gostaria de poder perguntar pra ele: que gosto tem o algodão, hein? Que gosto será que tem a morte? Porque o seu cheiro eu sentia todos os dias.